Resumo |
O debate sobre a regulamentação do uso medicinal da cannabis deu um novo passo com as consultas e audiências públicas 654 e 655 promovidas pela Anvisa entre junho e agosto em 2019. Buscou-se nessa pesquisa analisar como as máximas do rigor científico da Anvisa (Eficácia, Segurança e Qualidade) apareceram no posicionamento público dos representantes dos diversos segmentos da sociedade que participaram do processo. O uso do software Iramuteq permitiu realizar a Análise de Conteúdo da fala dos participantes e da Anvisa. Durante as audiências públicas observou-se, a partir da análise dos pronunciamentos, divergência de interesses entre os grupos: para a Anvisa, a cannabis era um produto ou medicamento passível de regulamentação; as associações debateram as regras para o cultivo associativo; as empresas questionaram o registro para produção e transporte dos produtos derivados da planta; os sindicatos abordaram o tema pela necessidade de revisar a lei e o acesso no nível jurídico; o sistema político defendeu a oportunidade de empreendimento num viés econômico; os pacientes e familiares deram depoimentos de seu uso; os cientistas citaram a importância de facilitar o acesso e o cultivo para fins de pesquisa; e as plataformas digitais trataram de temas diversos como direito de acesso, custo, importação e tratamentos. Em relação às máximas, a segurança foi a mais debatida pelo alto investimento tanto da construção da estrutura de cultivo indoor, quanto em relação ao transporte por transportadoras especializadas, registradas e autorizadas. A eficácia, para Anvisa comprovada mediante estudos clínicos e literatura específica da área médica e farmacêutica, foi questionada por pacientes e associações que comprovaram a eficácia dos derivados da Cannabis spp. com base em experiência própria e indicados por médicos como uso compassivo. A Qualidade foi questionada contrapondo o rigor no processo produtivo que garantia a qualidade do produto a ser disponibilizado para o paciente (muitas vezes à base de canabinoides isolados, como CBD ou THC) e a melhora na qualidade de vida dos pacientes, mesmo fazendo uso de produtos caseiros na forma de óleo full spectrum. A partir das informações e questionamentos do público, a Anvisa se comprometeu a criar a regulamentação, resguardando suas decisões e atitudes pelo rigor científico é garantido pelas máximas, enquanto os representantes da sociedade apontaram outras possibilidades complementares. Assim, ao relacionar suas decisões com critérios de Segurança, Qualidade e Eficácia pré-estabelecidos, a Anvisa resguarda seu papel regulador na área sanitária, estabelecido a partir de um rigor científico. Entretanto, isso não impediu os participantes de questionar e se posicionar diante desses critérios. Como decisão final, a Anvisa autorizou a venda de produtos à base de Cannabis em farmácias, mas proibiu o cultivo, de forma que os substratos ainda precisam ser importados. |