Resumo |
A presente comunicação se insere no quadro da historiografia sobre as práticas e representações em torno da morte. Nossa pesquisa pretende analisar como numa nova configuração social, marcada sobretudo pelo enraizamento populacional, a vontade de sociabilização e de sobrevivência pela/na memória sofrem deslocamentos, interferindo na expressão das últimas vontades da população testamentária. Nosso conjunto documental é composto por 206 testamentos anexados aos inventários do acervo do Cartório do 1º. Ofício da Casa Setecentista de Mariana dispostos ao longo de cem anos. As fontes foram sistematizadas em um sistema de gerenciamento de dados, para a seguir receberem tratamento serial quantitativo que, combinado à leitura qualitativa, permitiram analisar as mudanças e permanências nas práticas e representações do bem morrer. Os dados recolhidos demonstraram uma mutação no perfil da população testamentária, antes definido pela presença maciça de homens portugueses solteiros, no final do recorte cronológico majoritariamente nativa e mais variada em termos de sexo e de estado civil. Além da mudança de natureza demográfica, ao longo do tempo os executores testamentais ficaram cada vez mais circunscritos aos quadros familiares, e incumbidos de decisões cruciais. Junto a esses processos, vemos um movimento de simplificação do testamento e diminuição de seu conteúdo espiritual: os testadores vão deixando paulatinamente de usar o testamento como veículo para o detalhamento dos cuidados com o corpo e há uma queda no número geral de missas encomendadas, embora a diversidade de intenções e o investimento nas celebrações permaneçam inalterados. Partindo dessas considerações, buscamos articular os elementos colhidos na documentação constitutivos de uma dada religiosidade à especificidade da população testamentária de Mariana nos séculos XVIII e XIX. A leitura da documentação e a constatação destes elementos de transformação nos forneceram subsídios para a defesa da hipótese de que em Mariana as sensibilidades em relação à morte sofreram um deslocamento de funções e atribuições. No decorrer dos oitocentos, o testamento deixou de ser veículo privilegiado para as demonstrações de fé e para as recomendações religiosas, esses passam a ser confiados aos núcleos dos mais próximos. Além disso, a preocupação salvacionista que o testamento tem enquanto meio de memória começa a dar espaço a outras preocupações que sempre a acompanharam, as quais, antes submetidas a ela, se tornam um objetivo em si mesmo. São elas o desejo de filiação e a vontade de sobrevivência pela/na memória, fomentando a consolidação de redes de sociabilidade durante a vida da comunidade, as quais se estendem para solidariedades entre vivos e mortos quando do falecimento de seus membros. Assim, buscamos demonstrar como em um novo quadro social foram delineadas diferentes estratégias de filiação, acompanhadas da emergência de uma outra dimensão da memória como maneiras de enfrentar o drama da morte. |