Resumo |
A virada do século XIX para o século XX foi marcada por grandes debates acerca da possível decadência de um mundo organizado sob o caos. De uma sociedade em que Deus está morto, o anúncio da era moderna trazia ainda, além da desconfiança na Ciência, a desconfiança no próprio homem. Pesquisas sobre a mente humana e os embates entre a igreja, a Ciência e o ser humano surgiam e as perguntas que pairavam sobre a humanidade assolavam e rumavam as trombetas do fim: se não viemos de Deus e não podemos confiar em nossa inteligência, que faremos? Quem somos? Do que estamos feitos? É sob essa perspectiva, e considerando que a Literatura abarca em si traços da cultura e da época em que se insere, este trabalho pretende analisar o romance 'O estranho caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde' (em língua inglesa), do escocês Robert Louis Stevenson (1886) e o conto machadiano 'A Causa Secreta' (1885), relacionando dois episódios de cada obra aos conceitos em língua alemã de Sigmund Freud (1919) e de Arthur Schopenhauer (2004), respectivamente, Unheimlich - o estranho-familiar e Schadenfreude - a alegria sombria, na representação da dualidade da mente humana através de suas personagens principais, os doutores Henry Jekyll e Fortunato. Nesse sentido, e baseados nas teorias da tragédia catastrófica de Terry Eagleton (2003), bem como no ensaio do filósofo francês George Bataille sobre os interditos (1957), realizamos uma pesquisa bibliográfica acerca das obras selecionadas e de seus contextos de época para o enquadramento de cenas em que os conceitos emergissem. As cenas da primeira obra, referentes à primeira morte causada por Mr. Hyde e ao momento em que este visita a casa de Jekyll, quando relacionadas ao jantar na casa de Fortunato e a experiência com o rato no escritório do médico, demonstraram que mesmo no mais nobre homem a consciência (individual, moral e social) e a inconsciência atuam em conjunto, inseparáveis, como uma molécula de átomo indivisível, mas que, no desbalanço de medidas encontrará, ao saborear o proibido e o secreto, não apenas causas de espanto e medo, mas também sensações indecifráveis de prazer e satisfação. De certo, o riso pela desgraça alheia e a repressão dos impulsos funcionam como mecanismos de defesa da nossa mente e andam par a par, numa linha tênue entre a razão e a insânia, como condição de nossa humanidade. Entretanto, alguns, sem se deixarem controlar, revelam o perigo de nossos Jekylls e Fortunatos interiores que, ao exteriorizarem seus desejos, prazeres e alegrias mais sombrios, são capazes de cometer as maiores atrocidades sem se arrepender nem sentir culpa. Assim, concluímos que as obras, avant-le-temps, pelo viés do efeito de causalidade gerada na desordem dos fatos, e simbolizando distúrbios da mente como a esquizofrenia no primeiro e a psicopatia no segundo, representam a nossa anima dual, geralmente controlada pela moral e pela ética regentes de cada sociedade. |