Resumo |
A presente pesquisa dialoga com a chamada história das “atitudes perante a morte”, relacionando-se com a história cultural e social. Nosso trabalho procura mostrar como se apresentava, da segunda metade do século XVIII a meados da centúria seguinte, em Mariana, o discurso e as práticas em torno do morrer em diálogo com os princípios católicos. A documentação usada na pesquisa é composta por 155 testamentos do Cartório do 1º. Ofício de Mariana, produzidos entre 1748-1848. Esses registros fazem parte do conjunto documental que vem sendo tratado pelo Laboratório Multimídia de Pesquisa Histórica (LAMPEH) e foram selecionados devido à sua riqueza e acessibilidade. Os testamentos receberam tratamento serial quantitativo combinado à leitura qualitativa, a fim de observarmos, para a sociedade e período em questão, as práticas e representações tocantes à morte e ao morrer, bem como as transformações nesse âmbito operadas. Observamos que o testamento, embora constituísse ato personalíssimo, congregava uma série de indivíduos e coletividades: associações leigas, testamenteiros, sacerdotes, parentes, etc., e a cada um cabia uma função no “jogo” da salvação ou condenação eterna. Além disso, o conjunto de práticas religiosas – sufrágios, doação de legados pios, sepultamento religioso, etc. – eram medidas que caminhavam para o mesmo fim: o estabelecimento de uma memória individual como meio de atingir a salvação. Vimos ainda que no oitocentos teve início um processo de simplificação do testamento e diminuição de seu conteúdo espiritual. Dentro dos limites da investigação, buscamos compreender essa mutação no perfil da documentação a partir da observação de uma articulação entre as instituições religiosa e familiar no que tange a construção de redes de sociabilidades durante a vida do indivíduo e também em seus momentos últimos, quando se chega ao limite do poder de decisão sobre a vida. A partir disso, nos opusemos às análises que defenderam uma suposta descristianização da sociedade. Sugerimos que a supressão do elemento religioso na documentação não indicou perda de religiosidade por parte da população, mas deslocamento de atribuições. No decorrer do tempo, o testamento deixou de ser veículo privilegiado para as demonstrações de fé e para os pedidos espirituais, esses passam a ser confiados aos núcleos dos mais íntimos. A morte vista enquanto momento a partir do qual o indivíduo perde a capacidade de fazer valer suas escolhas pessoais explica a função do testamento: o documento que consegue postergar para além do falecimento as decisões e a memória do indivíduo. Mas, por outro lado, fica evidente na documentação o poder atribuído a outras instâncias: família, comunidade religiosa e testamenteiro. A partir de tudo que foi apresentado, ficou claro que a morte e o morrer tratavam-se de construções culturais e sociais e assumiam papel destacado na própria existência do indivíduo e da comunidade, mesmo que possa parecer contraditório. |